sexta-feira, 28 de julho de 2017

A Dança dos Lenços - Dois Lenços na História de Vargas.

Dois Lenços na História de Vargas
por: Carlos Heitor Cony


Getúlio representado com o tradicional
lenço branco castilhista.
Getúlio usava um uniforme sóbrio, como convinha ao chefe civil de um movimento armado. As fardas provincianas tinham uma combinação mediterrânea de cores e símbolos que resultava feérica. Um coronel dos provisórios, lançado no hall de um hotel em Nice, seria tomado como porteiro ou como o conde de Luxemburgo em pessoa e farda. Quanto a ele, o único adorno que consentiu em usar era anterior à farda e ao movimento revolucionário: foi o lenço branco do seu partido, o lenço chimango, símbolo das velhas lutas gauchescas. O lenço de Júlio de Castilhos, de Borges de Medeiros, o lenço republicano.

Era a marca de sua pessoa, de sua grei, de sua crença. O partido contrário usava outro lenço, o vermelho do sangue maragato. A Frente Única unira adeptos de um e de outro lenço, mas cada qual ficou com o que era seu. O acordo tornara possível a "pax" que desceria sobre os pampas tumultuados, criando condições para que os gaúchos roncassem feio e forte no cenário nacional, não mais com fatos ou personagens isolados, como Pinheiro Machado, mas como unidade da federação que tinha o que dizer e fazer.

Apesar da união recente, quem era maragato botava no pescoço o lenço vermelho. Quem era republicano ficava com o lenço branco. O Acordo de Pedras Altas, entre Borges e Assis Brasil, previra uma união de idéias, não de lenços.

O trem que trazia os dois principais chefes revolucionários, Getúlio Vargas e Góis Monteiro, chegara a Curitiba e ali encontrara um clima emocionado. Um estudante paranaense morrera num combate ocasional, episódio realmente isolado, pois quase não havia luta entre as forças leais ao governo e os revoltosos que estavam dispostos a depor Washington Luís e, com ele, a Velha República. A cidade preparara um velório de herói nacional para a única vítima local. Getúlio e Góis não costumavam sair do trem onde funcionava o quartel-general da revolução.

Por conta própria ou por sugestão de algum assessor (não havia marqueteiros naquele tempo), os dois chefes supremos decidiram ir à capela onde o jovem estava sendo velado pela multidão. Abriram alas para eles. A mãe da vítima, ao reconhecer em Getúlio o homem que encarnava o ideal pelo qual o estudante se sacrificara, teve uma atitude surpreendente, espartana: abraçou-se a ele e, sem lágrimas na voz, disse que dera seu filho à pátria e à revolução, que não estava arrependida, só implorava que o sacrifício dele e o dela também não fossem em vão.

A cena comoveu até mesmo o tenente-coronel Góis Monteiro, homem habituado às intempéries da caserna. É possível que tivesse apelado, durante o trajeto do trem à capela, para o cantil, onde não se sabia se havia água ou cachaça. O fato é que, segundo uma testemunha, fungou prendendo um soluço.

Vargas, homem de controle emocional extraordinário, que se policiava como um anacoreta, sentiu um nó na garganta quando a mãe do herói o abraçou. Comovida, a multidão não suportou a cena e muitos começaram a chorar.

A hora não era para discursos, bastava o desabafo da mãe da vítima num arranque inesperado e brutal. Vargas fez um gesto que valeu por um discurso: aproximou-se do caixão, tirou o lenço branco do pescoço e o colocou sobre o rosto do estudante. Era mais que uma homenagem: era uma condecoração.

Quando ele se afastou da capela, um cidadão surgiu à sua frente. Tinha, em volta do pescoço, um lenço vermelho, o lenço maragato. Alguns anos antes, dois gaúchos com lenços diferentes, frente a frente, tinham de puxar o punhal ou a pistola, pois somente um deles deveria viver. Mas agora estavam todos no mesmo barco, na mesma aventura. O cidadão tirou o seu lenço e, num gesto de audácia que ninguém conseguiu evitar, colocou-o no pescoço que, havia três gerações, só conhecia uma cor de lenço: o branco.

Um republicano fanático teria repelido imediatamente o lenço adversário, tal como um maragato, que preferiria ser degolado, como em 1893, a usar um lenço do partido rival. Aquela imposição de lenços seria um exagero emocional que nem mesmo a união revolucionária toleraria. Que se unissem republicanos e federalistas, chimangos e maragatos para destruir um adversário comum certo. Mas que essa união conspurcasse o átrio das tradições, o templo dos velhos ódios, das muitas mortes e derrotas era demais.

Houve espanto e temor na multidão. Que faria ele, um republicano de estirpe, filho e neto de republicanos, de repente exibido em público com um lenço maragato no pescoço?

Getúlio nada fez, ou melhor, fez muita coisa. Partiu da capela por entre alas da multidão, enfrentando os ressentimentos provincianos de alguns de seus companheiros. Estava agora armado cavaleiro. Estava feito revolucionário. Com esse lenço vermelho chegaria ao Rio, assumiria o poder. Aquele vermelho não significava guerra nem sangue. Significava acordo. O sangue dele ficaria para bem mais tarde.

Publicado originalmente na Folha de SP, em 06/08/2004.
Agradecimentos a Igor Taam

Veja também:

V Geração Castilhista
As Raízes Socialistas no Pensamento Getulista.

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