O livro Ensaios de Antropologia
Brasiliana, publicado em 1933, no número 22 da coleção Brasiliana, reúne um
conjunto de 16 artigos escritos por Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) a partir
de meados dos anos 1920. Publicados pela primeira vez em jornais como o Diário Nacional de São Paulo, em
revistas literárias, como o Boletim de
Ariel, e em periódicos científicos, como os Archivos do Museu Nacional, os artigos tratavam de temas
relacionados à antropologia física e à eugenia, com enfoque especial para as
discussões sobre a formação da população brasileira e a questão racial, a
imigração e a ocupação do território nacional. Uma segunda edição do livro foi
publicada em 1978, acompanhada de uma apresentação dos próprios editores, que
ressaltava o papel de Roquette-Pinto na construção do campo antropológico no
Brasil e seu interesse pelo conhecimento do homem brasileiro. Foi publicada uma
terceira edição em 1982, mantendo a mesma estrutura da anterior.
Quando do lançamento da primeira edição, Roquette-Pinto já era um nome
bastante prestigiado no meio intelectual, conhecido não apenas por seus trabalhos
no campo da antropologia e da educação, mas também na área da comunicação, onde
se destacou pela fundação, em 1923,da primeira emissora de rádio do Brasil, a
Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Antropólogo e etnógrafo do Museu Nacional do
Rio de Janeiro desde 1905, Roquette-Pinto era também membro da Academia
Brasileira de Ciências, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da
Academia Brasileira de Letras, instituições nas quais estabeleceu um expressivo
círculo de relações intelectuais e pessoais (Lima & Sá, 2008; Souza, 2011).
No campo da antropologia física, era visto, desde o final dos anos 1920, como
um “mestre da antropologia brasileira”, conforme reconhecimento atribuído por
figuras como o sociólogo e ensaísta Gilberto Freyre e o historiador alemão,
radicado nos Estados Unidos, Rüdiger Bilden (Pallares-Burke, 2007; Lima, 2010; Souza,
2011). De fato, desde o seu ingresso no Museu Nacional, ele havia concentrado
sua trajetória nos estudos sobre as características antropológicas do Brasil,
como é possível perceber na publicação de obras como Rondônia: Anthropologia-Etnografia (1917), trabalho que resultou de
sua expedição científica pelo interior do país, e Seixos Rolados: estudos brasileiros (1927), livro no qual reuniu
textos esparsos publicados em anos anteriores.
É importante ressaltar que a publicação de Ensaios de Antropologia Brasiliana ocorreu num período de intensos
debates sobre os rumos do Brasil, sobretudo no que dizia respeito à sua
organização política e social e à própria construção da nação. Após quase quatro
anos de Governo Provisório, resultado da chamada Revolução de 1930, que
conduziu Getúlio Vargas ao poder, as lideranças políticas e intelectuais concentraram
suas atenções na formulação de uma nova constituição que prometia modernizar a nação
brasileira. A exemplo do que vinha ocorrendo em anos anteriores, a questão da colonização
do território e da formação da nacionalidade brasileira foram temas amplamente
debatidos durante a elaboração da carta constitucional de 1934. Como se sabe,
as ideias e os projetos sobre a formação da nação brasileira ocuparam um lugar
central nas discussões promovidas no país nesse período, estimulados pelo
nacionalismo político, pelos ideais fascistas e pelo contexto internacional,
envolvendo as discussões sobre raça, populações e nação (Souza, 2011). Não se
pode perder de vista que o início dos anos 1930 foi marcado pelo fortalecimento,
em várias partes do mundo, dos regimes fascistas, que acionavam as teorias
raciais como elementos centrais na construção de suas ideologias nacionalistas.
Emblemática nesse sentido foi a ascensão do nazismo na Alemanha, com a chegada
ao poder do chanceler Adolf Hitler em 1933, que promoveu o discurso eugênico e
o arianismo como ideologia oficial de Estado (Proctor, 1988).
No
campo intelectual brasileiro, o ano de 1933 foi marcado pela
publicação de Casa-Grande & Senzala,
de Gilberto Freyre, obra que se transformaria num paradigma
interpretativo sobre
a formação da sociedade nacional. Baseado numa extensa pesquisa
histórica e
sociológica, o ensaio de Gilberto Freyre apresentava uma leitura
positiva sobre
a vida cultural do país e a formação de uma sociedade multirracial,
construída
a partir de um amplo processo de miscigenação envolvendo africanos,
europeus e
indígenas. De outro lado, neste mesmo ano foi também publicado o livro
Sexo e civilização: aparas eugênicas, do
médico e eugenista Renato Kehl, cuja trajetória fora dedicada à
organização do
movimento eugênico no Brasil e à defesa de medidas extremas, como a
esterilização eugênica e um rigoroso controle matrimonial. Ao contrário
de Casa-grande & Senzala e de Ensaios de Antropologia Brasiliana,
que
valorizavam a formação mestiça brasileira como elemento distintivo da
identidade nacional, a obra de Renato Kehl fazia coro ao racismo
científico e
ao determinismo biológico que grassavam livremente em vários países da
Europa,
nos Estados Unidos e mesmo na América Latina. Para ele, os grandes
problemas do
Brasil estariam diretamente relacionados à constituição racial do país,
sendo a
miscigenação entre brancos, negros e indígenas o principal entrave para o
progresso
econômico, o desenvolvimento intelectual e a organização política e
social da
nação (Stepan, 2004; Souza, 2006; Wegner & Souza, 2013).
Profundamente inserido nos debates travados nesse contexto, o livro de
Roquette-Pinto deve ser visto como uma resposta às principais questões que
envolviam a sociedade brasileira, expressando as ideias, polêmicas e projetos que
mobilizavam sua produção intelectual e sua militância política. O conteúdo dos
artigos que compõem as páginas de Ensaios
de Antropologia Brasiliana não apenas traduzia sua inserção no campo da
antropologia, uma vez que apresentava um amplo diálogo com a produção
antropológica internacional, como também ressaltava a sua forte atuação na
esfera pública. Seu esforço para conciliar a atividade de cientista e
intelectual com a de homem público preocupado com os destinos do país se
definiu, aliás, como uma característica marcante de sua trajetória. Não à toa,
seus estudos antropológicos eram empregados como instrumentos de ação política,
por meio dos quais procurou construir um espaço de legitimidade para intervir
nos debates sobre o futuro do país, principalmente no que dizia respeito à
antropologia do homem brasileiro, tema que o perseguia desde sua juventude.
A discussão antropológica sobre raça e populações é, portanto, tema
central de Ensaios de Antropologia
Brasiliana. Já no parágrafo de introdução o autor destaca: “Para as nações
modernas não há problema tão importante quanto o da população. Tudo epende da gente; do número e da qualidade”
(Roquette-Pinto, 1933, p. 5; grifo no original). É importante ressaltar que no
período do entre-guerras discutir a temática sobre populações significava não
apenas pensar em questões demográficas, na ocupação do território e no processo
civilizacional, mas também na própria construção do poderio militar e na força
econômica e política de uma nação. Para refletir sobre essas questões,
entendia-se que era imprescindível conhecer as origens e características
biológicas de sua gente, os efeitos da miscigenação racial e a questão da
identidade nacional, possibilitando assim projetar a viabilidade de uma nação.
Não é por acaso que a antropologia física e a eugenia tiveram um papel central
nesse contexto, auxiliando no conhecimento e na descrição das populações
nacionais, bem como na construção de projetos envolvendo políticas de aperfeiçoamento
racial. Como o enunciado de Roquette-Pinto deixava claro, nada era mais
importante que a quantidade e a qualidade da população que habitava o país. Tratava-se
de pensar a população como o grande corpo biológico da nação, sobre o qual se
deveria intervir, por meio da ciência e da política, para erigir um “povo”
produtivo, forte e civilizado. Para alguns, significava transformar a população
negra, indígena e mestiça em gente branca, enquanto para outros, como era o
caso do próprio Roquette-Pinto, tratava-se antes de tudo de melhorar o corpo da
nação por meio da saúde, da educação e da assistência social.
Logo no capítulo de abertura[1] de
Ensaios de Antropologia Brasiliana,
Roquette-Pinto analisa um conjunto de estudos científicos realizados ao redor
do mundo sobre o desenvolvimento da população mundial. Ele destaca
especialmente os trabalhos publicados por integrantes da União Internacional
para os Estudos Científicos dos Problemas de Populações, instituição que
integrava como representante do Brasil. Entre estes trabalhos, analisa de forma
mais detida as pesquisas publicadas pelo biólogo norte-americano Raymond Pearl,
que dedicou sua carreira ao estudo da eugenia, da estatística e da biometria.
Comentando as principais obras desse autor, Roquette-Pinto chamava a atenção
para o cuidado que as nações modernas deveriam ter com o controle da
natalidade, da fecundidade e da longevidade de suas populações, aspectos que
contribuiriam decisivamente para a “evolução” e o melhoramento das futuras
gerações. Concordava com Pearl que as causas das guerras, das epidemias e das
altas taxas de mortalidade teriam menos relação com a superpopulação mundial do
que com “a má qualidade do material humano” (Idem, p.13-14), tema longamente
discutido em época de expansão das ideias eugênicas.
Ainda no
primeiro capítulo, Roquette-Pinto comenta a obra The natural increase of mankind, do médico e escritor James Shirley
Sweeney, um discípulo de Pearl. Segundo o antropólogo brasileiro, Sweeney
propôs estudar o crescimento natural de várias populações, traçando, ao mesmo
tempo, um quadro comparativo. Seu interesse era analisar, a partir do índice de
vitalidade (vital index) criado por
Pearl (que levava em consideração dados comparativos entre a natalidade e a mortalidade),
as condições biológicas e sociais das populações de diferentes regiões do
mundo. Embora o autor norte-americano tivesse analisado dados de 56 países –
entre eles Argentina, Uruguai e Chile –, o Brasil não constava em seu estudo. A
ausência do Brasil neste ranking,
explicava Roquette-Pinto, era justificada pelo fato de simplesmente não haver
dados completos sobre os índices demográficos e as características da população
brasileira. Os dados que apresentados em 1927 pela Diretoria Geral de Estatística
não levavam em consideração, por exemplo, os índices demográficos de boa parte
dos municípios brasileiros, especialmente os do norte do país. Deste modo,
concluía: “enquanto não pudermos saber quantos somos, quantos nascem e quantos
morrem – é escusado querer encontrar o Brasil na lista das nações, publicadas
nos tratados científicos...” (Idem, p. 12-13)
Em relação às
causas das variações populacionais, embora Pearl defendesse que eram devidas
especialmente aos fenômenos naturais, Roquette-Pinto concordava com Seewney que
os fatores sociais e econômicos lançavam um peso considerável para mudar as
características demográficas de uma população. No que dizia respeito, por
exemplo, ao declínio dos nascimentos – que, segundo ele, era uma realidade
quase geral no mundo todo –, as explicações deveriam ser encontradas tanto em fatores
naturais cíclicos, quanto no aumento das práticas restritivas e nas influências
econômicas. Um exemplo da influência desses dois últimos fatores, explicava ele,
poderia ser verificado nas chamadas “classes superiores”, nas elites
econômicas, nas quais as taxas de natalidade decaíam com mais força (Idem, p. 9-11).
Roquette-Pinto
entendia que a oscilação nos índices de natalidade e mortalidade também deveria
ser considerada a partir das características fisiológicas das raças, conforme
analisava no quinto capítulo de Ensaios
de Antropologia Brasiliana. Neste aspecto, citava novamente as
investigações de Pearl realizadas junto aos negros norte-americanos, destacando
que determinadas doenças poderiam atingir brancos e negros de maneira
diferenciada. Nos Estados Unidos, os estudos de Pearl apontavam que esses dois
grupos raciais reagiam diferentemente às doenças chamadas orgânicas. De outro
lado, enquanto os negros pareciam mais sujeitos às “doenças infecciosas”, a
população branca seria mais suscetível ao desenvolvimento do câncer. Por esse
motivo, Roquette-Pinto afirmava:
(...) uma das
conclusões a que chegaram os estudiosos de tais estatísticas é que as
características e a distribuição atual da mortalidade, em nossa espécie,
resultam em grande parte da evolução sofrida pelo próprio corpo humano. Parece,
escreveu Pearl, que os diferentes aparelhos do organismo não conseguem resistir
igualmente bem às solicitações do ambiente que encontram (Idem, p. 45).
Apesar
dos aspectos fisiológicos e hereditários serem decisivos para essa análise,
Roquette-Pinto não deixa de apontar também para a importância que as condições
do meio e os “modos de vida” lançavam na definição das patologias das populações
(Idem, p. 44). As pesquisas que havia realizado nos anos 1920 com populações
brasileiras, e publicadas no penúltimo capítulo do livro, já demonstravam que a
longevidade, a natalidade e a mortalidade entre negros, mulatos e brancos eram bastante
discrepantes. Embora em sua opinião não houvesse “questão de raça” entre os
brasileiros, não era menos verdade que negros e mulatos viviam em condições
mais precárias, não tendo o mesmo “amparo social” que a população branca (Idem,
p. 158-159). Neste sentido, entendia que uma questão importante para os que se
envolviam com os problemas das populações, lembrando as lições de Pearl, era
considerar o que cabia ao terreno da biologia e da herança e o que,
referindo-se às causas sociais, era de domínio do meio (Idem, p. 45-46).
No
segundo capítulo de Ensaios de
Antropologia Brasiliana, ao analisar as condições de emigração dos
nordestinos para o sul do Brasil, Roquette-Pinto demonstra que o grande
problema que envolve a saúde, a eficiência e a vitalidade das populações brasileiras
está diretamente ligado à falta de organização nacional. Essa lição, apontava,
já havia demonstrado o escritor Alberto Torres, a quem o antropólogo se referia
como um “sociólogo realmente sábio e profundo”. Na sua avaliação, “o caso dos
sertanejos, que as secas impelem a procurar as terras do sul, envolve um
paradoxo que mostra, mais uma vez, como andava certo o pensador: o Brasil, como
algumas nações da América, tem de ser obra de sabedoria política”, reafirmando
que “o grande problema do Brasil é a organização dos seus valores” (Idem, p.17).
Desse modo, entendia que a questão da ocupação do território nacional pelos
sertanejos, ou a vinda de nordestinos para suprir a necessidade de mão de obra
do sul do Brasil, dependeriam apenas de organização do Estado brasileiro. Mas não
bastaria somente a doação de terras ou a criação de colônias agrícolas para a
população de migrantes, como sugeriam alguns. Era preciso investir contra a “defasagem
social” que acometiam os sertanejos nordestinos, como a falta de educação,
saúde e o acesso a novas técnicas agrícolas (Idem, p.18-24).
No
terceiro capítulo, Roquette-Pinto apresenta um curioso ensaio sobre concurso de
miss realizado no Rio de Janeiro, no
qual um grupo de “austeros professores” estava empenhado na “escolha da jovem
brasiliana que deverá representar a mulher deste país num certo concurso
internacional” (Idem, p. 25). Como um antropólogo que há mais de 25 anos vinha
dedicando seus estudos ao conhecimento das “raças humanas”, Roquette-Pinto
contestava o “critério sensorial de beleza” que os jurados empregavam na
escolha das misses. Para ele, tal critério poderia ser muito interessante para
um salão de baile, mas não “num processo de seleção matrimonial que os
estadistas estão querendo, mui justamente, controlar, em benefício da raça” (Idem,
p.31). Em seu ponto de vista, a escolha dessa miss deveria passar pelos critérios estéticos da “prova eugênica”,
verificando a sua “boa herança” através de “exames biológicos severos” de sua
morfologia, fisiologia, radiografia e antropometria, além de exame em
“laboratório de psicologia experimental” (Idem, p.26-27).
De qualquer modo, apesar do equivoco do júri em deixar-se levar pelo
“critério sensorial”, desprezando os aspectos relacionados à herança racial, à
saúde física e mental, Roquette-Pinto concluía que o referido concurso teve o
mérito de chamar a atenção de todo o país para o “problema da raça”. Segundo
ele,
seria
lastimável não concorrer para que ele [o concurso de misses] se transforme em
coisa realmente bela e significativa: um grande povo, quarenta milhões de
indivíduos, anualmente festejando os seus filhos mais prendados em todo
sentido; mais fortes, mais lindos, mais dignos, por si e pelos seus
antepassados, de representar o ideal da sua gente” (Idem, p. 34-35).
Enquanto Roquette-Pinto via na educação eugênica a possibilidade de
aperfeiçoar a população nacional, o concurso de beleza feminino transformava-se
num modo eficiente de instalar na consciência nacional a preocupação com a formação
estética da nacionalidade, na qual predominariam, independente da origem
racial, os “tipos” mais “fortes”, “belos” e “saudáveis”.
Na sua compreensão, o caminho para o revigoramento eugênico do homem
brasileiro poderia ser encontrado, portanto, na criação de leis educativas que
incentivassem, por exemplo, a união conjugal entre indivíduos considerados “eugenicamente
saudáveis”, o que permitiria preservar uma “boa descendência”. Neste sentido, ao
invés dos “fúteis” concursos de beleza, sugeria como “proposta em prol da raça”
que se realizasse, anualmente, em cada um dos municípios brasileiros, um grande
concurso para escolher, entre os trabalhadores rurais e os operários das
indústrias, um casal de jovens que apresentasse “os tipos de herança realmente
eugênicas, e qualidades pessoais relevantes” (Idem, p. 29). Em suas palavras,
os fazendeiros e industriais deveriam tomar para si essa “linda iniciativa”,
pois tal empreendimento traria lucros certos aos patrões, “contribuindo para
melhorar os artífices”. Como prêmio aos “dois jovens eugênicos”, Roquette-Pinto
sugeria que os patrões dessem “um aumentozinho de ordenado... de modo que,
‘Ela’ pudesse casar com ‘Ele’” e gerar uma prole saudável. “É o que deseja a eugenia”, destacava ele (Idem,
p.29-30).
O uso que Roquette-Pinto fez das ideias eugênicas deve ser visto,
portanto, sob dois ângulos diferentes. Por um lado, emprega a eugenia para
demonstrar a singularidade do processo de miscigenação brasileiro, o que lhe
possibilitou refutar as teses racistas sobre a degeneração do “homem mestiço”;
por outro, aciona a eugenia como uma ferramenta importante na conservação da
“boa herança” e no aperfeiçoamento da saúde e dos aspectos estéticos da “raça”.
Em última instância, as ideias eugênicas são apropriadas de forma a se
enquadrar em seu projeto político de valorização dos “tipos brasilianos”.
Disposto a apontar as verdadeiras mazelas do país através da observação
rigorosa da realidade, como bem destacou Olívia Maria Gomes da Cunha,
“Roquette-Pinto filiava-se a uma vertente que procurava revestir o discurso
científico com o manto apaixonado da defesa da nação” (Cunha, 2002, p. 276).
Deve-se frisar que essa preocupação fortemente nacionalista que
Roquette-Pinto assumiu desde o início de sua trajetória intelectual, procurando
encontrar alternativas viáveis para se pensar a construção nacional, tem
íntimas relações com o próprio pensamento social brasileiro do início do século
XX. Se eugenistas europeus e norte-americanos exerceram uma certa influência em
seu pensamento eugênico, autores nacionais como Euclides da Cunha, Manoel
Bomfim e Alberto Torres, por sua vez, foram fundamentais na definição do seu
projeto nacional. Com Euclides da Cunha, Roquette-Pinto aprendeu a olhar com
atenção a situação do homem sertanejo, o que o levou a explorar o interior do
Brasil em busca do conhecimento da população sertaneja, como ocorreu em 1912, durante
a expedição que realizou em direção à região amazônica, no norte do Mato Grosso.
Esses autores, cada um a seu modo, contribuíram de forma decisiva para que ele
se distanciasse das interpretações que viam a “questão racial”, biológica e
climática como responsáveis pelos dilemas do Brasil. Para estes intérpretes,
como sabemos, a revitalização da população nacional dependeria da resolução de
fatores sociais e políticos específicos, como a superação da herança colonial, a
interiorização do país e o investimento em educação, saúde e alimentação do
“povo”.
Atento ao acalorado debate que marcou as décadas de 1920 e 1930, Roquette-Pinto
dedica outros capítulos do livro para tratar da questão eugênica. No capítulo
9, apresenta um balanço sobre as principais discussões travadas durante o
Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, realizado em 1929 no Rio de Janeiro.
O evento fora presidido por ele próprio, que nesse momento já era visto como
uma das principais autoridades do movimento eugênico no Brasil. Logo no início
do capítulo, ele faz questão de ressaltar que ainda havia muita confusão, entre
os participantes do evento, sobre o conceito de eugenia. Em suas palavras, “há
pessoas, no Congresso, para quem ‘Eugenia’ é apenas um nome, em moda, de que se
enfeita a velhíssima higiene” (Idem, p. 70). Como forma de reafirmar a sua
autoridade nesse campo, e ao mesmo tempo definir a especificidade da ciência
eugênica, afirmava que a higiene é o conhecimento que procura melhorar o meio e
o indivíduo, enquanto a eugenia “procura melhorar a ‘estirpe’, a ‘raça’, a
‘descendência’”. De acordo com suas análises, há muito tempo teria se
verificado que a higiene, sozinha, não conseguia impedir que surgissem certos
“tipos de enfermos”, uma vez que “há doenças da raça, há doenças ou deficiências
do gérmen” (Idem, p.71).
O que estava em questão nesse debate era, acima de tudo, uma disputa
entre os adeptos da teoria evolucionista neolamarckista e os defensores das
teses mendelianas. Enquanto a primeira afirmava a possibilidade da herança dos
caracteres adquiridos do meio, a segunda afirmava que somente pelo processo de
reprodução humana é que se poderia transmitir a herança genética, o que
modificava profundamente o modo de intervenção no processo de melhoramento
eugênico da população. Para os neolamarckistas, por exemplo, projetos de
reforma do meio, como políticas de educação, higiene e saúde pública,
contribuiriam para “regenerar a raça”, na medida em que as futuras gerações
tenderiam a herdar essas mudanças do meio, melhorando seu “estoque genético”.
Para os adeptos do evolucionismo mendeliano, como o próprio Roquette-Pinto, as
mudanças do meio eram importantes para a reforma social, mas elas não teriam
poder de interferir na herança genética das futuras gerações. Para estes,
somente as políticas voltadas para o controle reprodutivo fariam diferença no
processo de melhoramento eugênico das futuras gerações (Stepan, 2004; Souza,
2008).
Essa discussão é retomada por Roquette-Pinto nos capítulos 7 e 10, nos
quais discute os aspectos teóricos da eugenia, bem como a contribuição de
eugenistas como Francis Galton, Karl Pearson, Charles Davenport, Herbert
Jennings e Alfred Mjöen. No sétimo capítulo, destaca especialmente os estudos
do norte-americano Davenport, presidente da Federação Internacional das
Organizações Eugênicas e uma das principais autoridades no campo da genética e
da eugenia. Ao analisar os trabalhos que o próprio Davenport lhe havia
encaminhado, destaca que seu colega norte-americano era um dos biólogos que não
acreditava que o meio fosse capaz de agir sobre os caracteres hereditários (Idem,
p. 59). Desse modo, Roquette-Pinto acabava se utilizando da autoridade
científica de Charles Davenport como uma forma de legitimar seus pressupostos
científicos entre os eugenistas brasileiros, que, em sua maioria, eram adeptos
do neolamarckismo.
Ainda no capítulo 7, ele comenta a pesquisa que Davenport realizou na
Jamaica, no final dos anos 1920, sobre “o cruzamento de raças”. Além de
destacar os novos métodos empregados pelo eugenista norte-americano para
diferenciar as características raciais, como o uso do exame de sangue e os
testes psicológicos, Roquette-Pinto analisa alguns dos resultados apresentados
pelo autor, sobretudo no que dizia respeito ao aspecto comparativo entre
brancos, negros e mestiços. Uma das “conclusões inesperadas” que chamou a sua
atenção teria sido a demonstração de que os negros são mais “bem-dotados” do
que os brancos no que diz respeito à “capacidade musical”, à “memória visual” e
à habilidade para desenhar, que Davenport havia chamado de “capacidades
sensoriais” (idem, p. 60-61). Em relação às capacidades intelectuais dos
mestiços jamaicanos, Roquette-Pinto destacava que o eugenista norte-americano
os havia classificado numa posição intermediária entre brancos e negros.
Lembrava que “embora alguns mulatos sejam iguais aos mais bem-dotados brancos,
quanto a certos característicos mentais, contudo, entre eles existe uma grande
percentagem de indivíduos que parecem ainda menos aptos do que os próprios
negros, para o fim de conseguir seu progresso natural”. O antropólogo
brasileiro concordava com seu colega norte-americano, frisando que suas
pesquisas realizadas no Brasil, neste mesmo período, permitiam “dizer mais ou
menos a mesma coisa”. Entretanto, estaria “convencido” de que tudo isso
correria “por conta de causas muito mais ‘sociais’ do que ‘biológicas’”,
ligadas à “defasagem social” que acometiam os brasilianos (Idem, p.61-62).
As condições sociais das populações mestiças e dos negros no Brasil são
amplamente discutidas em Ensaios de Antropologia
Brasiliana. No capítulo 4, por exemplo, no qual trata da tradição
antropológica portuguesa, Roquette-Pinto destaca que nem o clima nem a
miscigenação seriam responsáveis pelos problemas da colonização e da civilização
nos trópicos. Ele entendia que a “mestiçagem” só seria um “mal” quando fosse “realizada
ao deus-dará dos infortúnios, sem eira nem beira, sem higiene e sem eugenia,
sem educação e sem família”, chamando a atenção tanto para os aspectos raciais
quanto para a centralidade que as questões sociais ocupavam nesse processo (Idem,
p. 41).
O mesmo tipo de conclusão é repetido no capítulo 6, quando comenta um
artigo que o historiador Rüdiger Bilden tinha lhe enviado para apreciação.
Tratava-se de um trabalho sobre a história da escravidão no Brasil publicado em
The Nation, a propósito da visita do
presidente Hoover ao Brasil, ocorrida em 1928. Referindo-se a Bilden como um
“cientista consciencioso e bom amigo do Brasil”, Roquette-Pinto chamava a
atenção para as “páginas brilhantes” que o autor havia traçado sobre o tema
“Brazil, laboratory of civilization”. De outro lado, lamentava o fato de os
editores da revista terem “mutilado” a obra de seu amigo Bilden, “cortado no
que possuía de mais valioso, como apreciação insuspeita dos nossos mestiços”.
Inconformado com a atitude reprovável dos editores norte-americanos,
Roquette-Pinto não deixou de transcrever um dos trechos extraídos quando da
publicação do texto pela revista The
Nation:
Há, decerto, muita coisa, na vida do Brasil, que não é
satisfatória. Mas atribuir tais condições à composição racial do país ou à
mistura de raças é completamente errado. Um estudo crítico do desenvolvimento
histórico do Brasil demonstra que tais males são consequência de um emaranhado
de fatores, consequência da sociedade escravista. A causa dos males não é a
raça; foi a escravidão (Bilden, apud Roquette-Pinto, Idem, p. 50).
De acordo com o antropólogo brasileiro, era claro o motivo que levaram os
editores a excluir trechos como estes, uma vez que as palavras de Bilden
soariam bastante “inconvenientes” aos ouvidos dos leitores norte-americanos. Além
disso, o artigo, na expressão de Roquette-Pinto, era um desses trabalhos que
não apenas fazia justiça ao mestiço, como também à própria “história dos
defeitos e das qualidades da raça negra”, população fortemente discriminada nos
Estados Unidos, e que vivia sob um rígido sistema de segregação (1933, p.50).
Caracterizado como um intelectual engajado na luta contra o racismo, o antropólogo
brasileiro não deixa de confirmar as afinidades intelectuais existentes entre
ele e Bilden. Referindo-se ao argumento central do historiador alemão, segundo
o qual os “problemas do Brasil” não poderiam ser atribuídos à presença de
negros e indígenas e ao processo de miscigenação racial, mas sim à escravidão,
Roquette-Pinto destacava que suas ideias “exprimem um antigo ponto de vista de
que não me afastei até hoje”. Ao contrário, continuava ele:
(...) penso, às vezes, no que poderia ser o Brasil dos
nossos dias, se os nossos avós tivessem cuidado um pouco de educar e instruir
os escravos; se o ‘neto de Marco Aurélio’ [referindo-se ao imperador D. Pedro
II] tivesse, embora conservando o cativeiro, já que isso lhe parecia
necessário, promovido a adoção de algumas providências capazes de melhorar as
condições de eficiência da raça negra (Idem, p. 50-51).
Ainda no capítulo 6, Roquette-Pinto também cita, como forma de legitimar
as ideias defendidas em Brazil,
laboratory of civilization, as palavras de um conterrâneo de Bilden, o
renomado naturalista Fritz Muller, radicado em Santa Catarina. “Convivendo com
os negros e os mulatos desde 1852”,
quando se mudara para o Brasil, explicava Roquette-Pinto, Müller confessava que
conhecera em terras brasileiras negros de “puro sangue africano”, como o poeta
Cruz e Souza, que representavam “mais um reforço da minha velha opinião
contrária ao ponto de vista dominante, que vê, no negro, um ramo por toda parte
inferior e incapaz de desenvolvimento racional por suas próprias forças”. Entre
os negros com os quais travara contato, haveria “uma quantidade de fisionomias
nobres e expressivas como dificilmente se encontraria entre caucasianos vivendo
em situação social igualmente deprimida”, afirmara Fritz Muller em
correspondência ao irmão e também naturalista Hermann Muller (Idem, p.50-51)
Descrevendo o naturalista alemão como um homem de “uma honestidade
científica inigualável”, Roquette-Pinto frisava que Fritz Muller havia chamado
a atenção, ainda em meados do século XIX, para o fato de que as “falhas morais”
de negros e mulatos se explicariam antes de tudo “pela sua situação social”.
Embora não faltasse, mesmo entre os brasileiros, dizia Roquette-Pinto,
repetindo o argumento com que Bilden iniciara seu artigo, quem “nos atordoe
gritando que os males da nação provêm da raça e da mestiçagem”, as palavras do
naturalista alemão soavam como um alento para aqueles que apostavam na
viabilidade da população brasileira (Idem, p.53).
A defesa mais emblemática da população brasileira é apresentada no
penúltimo capítulo de Ensaios de
Antropologia Brasiliana. Trata-se de um extenso artigo no qual publicou o
resultado de suas pesquisas sobre os “tipos antropológicos do Brasil”, trabalho
que vinha realizando desde o final dos anos 1910, com um grupo de pesquisadores
associados ao Museu Nacional. O artigo já havia sido publicado em 1928 pelos Archivos do Museu Nacional, e
apresentado durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, transformando-se
rapidamente numa referência para as discussões sobre as características dos
“tipos raciais” brasileiros e a viabilidade do país enquanto nação mestiça.
O principal objetivo desse trabalho era elaborar um retrato antropológico
que pudesse demonstrar não somente quais eram as características raciais do
Brasil, mas também analisar as condições biológicas e a viabilidade do homem
brasileiro. Para chegar a estas respostas, Roquette-Pinto analisou centenas de
fichas antropométricas com informações de “rapazes de todos os Estados, filhos
e netos de brasilianos, de 20 a
22 anos, todos sadios e sujeitos às mesmas condições de vida” (Idem, p. 126). A
partir de métodos largamente empregados pela antropologia física, realizou um
minucioso estudo da constituição física e orgânica dos indivíduos, ou mesmo dos
caracteres temperamentais ou psicológicos. Embora suas pesquisas apresentem
informações importantes do ponto de vista sociológico, o conceito biológico de
raça era central em suas análises. Conforme a historiografia tem demonstrado, a
antropologia largamente praticada no início do século XX lançava mão de um
minucioso estudo da constituição física, psicológica e orgânica dos indivíduos,
desde a cor dos olhos e o tipo de cabelo, até a estatura, o perímetro do tórax,
o índice cefálico e nasal e os efeitos do meio e da miscigenação (Stocking, 1996;
Souza & Santos, 2012; Lindee & Santos, 2012).
Para fazer a coleta dos dados antropométricos, Roquette-Pinto e sua
equipe de pesquisadores seguiam uma série de “normas e técnicas” que já vinha
sendo adotada pela moderna antropologia física. Apesar de os antropólogos
brasileiros serem adeptos, desde o final do século XIX, dos métodos e das
técnicas antropométricas da escola francesa de Paul Broca e seus discípulos,
como Topinard, Bertillon e Manouvrier (Santos, 2002), a partir dos anos 1920 é
a antropologia alemã que passaria a predominar nas pesquisas de Roquette-Pinto
e de outros antropólogos ligados ao Museu Nacional, como Alvaro Fróes da
Fonseca, Bastos de Ávila e Heloísa Alberto Torres (Souza, 2012). No capítulo
sobre os “tipos antropológicos” do Brasil, Roquette-Pinto indicava que seus
trabalhos se apoiavam especialmente nos estudos de Félix von Luschan, Rudolf
Martin e Eugen Fischer, três dos principais nomes da tradição antropológica
alemã.
Vale
lembrar que o estudo das classificações antropológicas foi central para os
propósitos da antropologia física alemã, de modo que a taxonomia das raças
humanas foi exaustivamente debatida ao longo do entreguerras. Além dos
interesses que os estudos antropológicos apresentavam à política imperialista
alemã para conhecer o caráter e os hábitos dos povos colonizados, não se pode
perder de vista que a questão da classificação racial alimentava antigos
debates políticos e científicos, como o arianismo e a supremacia nórdica, os
efeitos da miscigenação, o tema das identidades nacionais ou mesmo as
discussões sobre a unidade e a diversidade da espécie humana (Proctor, 1998,
149-152). Muitos foram os antropólogos que viajaram para as colônias africanas
com o objetivo de buscar informações sobre os cruzamentos raciais, para coletar
dados antropométricos e identificar as variações ou padrões anatômicos e
fisiológicos dos diferentes tipos raciais, especialmente aqueles de formação
mestiça (Proctor, 1998; Massin, 1996; Penny & Bunzl, 2006).
Com o objetivo de compreender empiricamente as características raciais do
Brasil, Roquette-Pinto descreve os “tipos antropológicos” em quatro grupos
principais, cuja nomenclatura ele próprio inaugurava entre os brasileiros. Para
o “tipo branco”, deu o nome de leucodermos;
para os “mestiços” originados do “cruzamento” entre brancos e negros, de phaiodermos; para os mestiços de brancos
e índios, de xanthodermos; para o “tipo
negro”, de melanodermos. Segundo ele,
outros tipos raciais existentes no Brasil, como os cafusos, xibaros e caborés, não seriam incluídos em sua
classificação por serem “numericamente insignificantes”. Em relação ao
percentual de cada um dos grupos, os leucodermos
representariam mais da metade da população, 51%; os phaiodermos, 22%; os xanthodermos,
11%; os melanodermos, 14%; e os
indígenas, 2% do contingente total (Idem, p.127-128). A definição dessas
classificações se daria especialmente pelas medidas do índice cefálico e nasal,
pelo perímetro toráxico e pela estatura, e também por outras características
comuns na análise antropológica da época, como a cor da pele e o tipo de
cabelo. Esses dados são apresentados por Roquette-Pinto a partir de uma série de
gráficos, tabelas e quadros estatísticos reproduzidos nas páginas de Ensaios de Antropologia Brasiliana, o
que era feito como uma forma de reafirmar os critérios rigorosamente
científicos que dizia seguir para a elaboração do seu retrato antropológico do
Brasil.
A nomenclatura classificatória empregada por ele para identificar os
“tipos antropológicos” do Brasil foi saudada por seus contemporâneos como prova
de uma renovação científica importante para a ciência brasileira, pois se
tratava da primeira tentativa de imprimir “critérios científicos” específicos
de aferição de dados morfológicos e raciais entre a população nacional (Cunha,
2002, p. 281). Além disso, seu esforço para criar uma terminologia científica,
supostamente mais objetiva, padronizada e universal, possibilitava que os
antropólogos pudessem lidar com a caracterização racial brasileira de forma a
não ficarem submetidos às generalizações classificatórias “não-científicas”,
utilizadas no Brasil de forma irrestrita, conforme o uso que autores como
Silvio Romero, Nina Rodrigues, João Baptista de Lacerda, ou mesmo Capistrano de
Abreu e Euclides da Cunha teriam feito.
Apesar disso, seu método classificatório foi contestado por figuras como o
sociólogo e historiador Francisco de Oliveira Vianna, que o considerou como
similar “à velha classificação popular e puramente empírica dos nossos tipos
étnicos (branco, caboclo, negro e mulato), a que as denominações gregas
revestem de um colorido científico”. Embora reconhecesse a autoridade de Roquette-Pinto
no campo da antropologia, entendia que sua classificação parecia “pouco
suscetível de ser aproveitada utilmente, para os estudos das raças aqui
fixadas”, pois ignorava a existência de uma enorme variabilidade antropológica (Vianna,
1959 [1934], p.183-184). Na compreensão de Oliveira Vianna, seria impossível
classificar a população branca do Brasil a partir de um único “tipo
antropológico”. O mesmo valeria para os negros, cuja origem africana diversa
definia as suas características como amplamente heterogêneas. Deste modo,
ressaltava o escritor fluminense, “não havendo um tipo único negro, nem também
um único de branco, não é possível, em face das leis da herodologia [que estuda
a herança genética] étnica, a constituição de um tipo único para os produtos do
cruzamento destes tipos tão diferentes e tão heterogêneos” (Idem, p. 187-188).
Ou seja, a população mestiça também formaria um contingente bastante
heterogêneo, não cabendo na classificação formulada pelo antropólogo do Museu
Nacional.
No capítulo 15 de Ensaios de Antropologia
Brasiliana, Roquette-Pinto não apenas negava a existência de hierarquias
raciais como também se opunha à ideia de que os mestiços eram “tipos
degenerados” ou “inferiores”. Embora compreendesse que, do ponto de vista
estético, negros e mestiços fossem, em alguns aspectos, menos dotados de beleza
física que os “tipos caucásicos”, negava o princípio da inferioridade ou da
superioridade de atributos biológicos entre os diferentes grupos raciais.
Opondo-se às teorias degeneracionistas e ao racismo científico então em voga,
como aquelas que alimentavam as ideias defendidas por Oliveira Vianna e o
eugenista Renato Kehl, Roquette-Pinto recusava os prognósticos negativos que
apontavam as origens raciais do Brasil como responsáveis pelas mazelas de sua
população. Em suas palavras, “o número de indivíduos somaticamente deficientes
em algumas regiões do país”, conforme suas pesquisas haviam apontado, eram
realmente consideráveis. No entanto, isso não ocorria “por conta de qualquer
fator de ordem racial; deriva de causas patológicas cuja remoção na maioria dos
casos independe da antropologia” (Idem, p.170).
Roquette-Pinto entendia que a própria miscigenação racial que vinha
ocorrendo largamente no Brasil, não apenas teria contribuído para “o processo
geral de adaptação das raças aos diferentes meios brasilianos”, como também
teria possibilitado a formação de “tipos antropológicos eugenicamente
saudáveis”, homens “desbravadores e fortes” que seriam responsáveis pela
ocupação de áreas longínquas do interior do país. Suas pesquisas científicas
provavam que, tanto do ponto de vista fisiológico quanto psicológico, os
cruzamentos entre os grupos existentes no país dariam sempre “tipos normais”.
Por esse motivo, ressaltava que de acordo com os dados levantados ao longo de
suas pesquisas “pode-se concluir que nenhum dos tipos da população brasiliana
apresenta qualquer estigma de degeneração antropológica. Ao contrário. As
características de todos eles são as melhores que se poderiam desejar” (Idem,
p.169).
De acordo com os “documentos” reunidos ao longo de suas pesquisas, a
antropologia demonstrava que a existência de “indivíduos disgênicos” no país
era “questão de política sanitária e educativa”, e não de sua formação racial.
O grande número de doenças, a falta de assistência médica, a mortalidade
infantil, somados à falta de instrução e modernização do país, eram
responsáveis pelas precárias condições em que viviam milhares de “brasilianos”
em todo o território nacional, especialmente no interior, onde “tipos fortes e
resistentes” se encontravam em estado de quase absoluto abandono. Deste modo,
Roquette-Pinto entendia que a “insuficiência dos brasilianos” era “única e
exclusivamente” devido à “falta de
organização nacional” [grifo no original), o que queria dizer
principalmente “falta de educação do povo, nacionalização da economia e
circulação das ideias e da riqueza” (Idem, p. 123-124).
Como já destacamos, os estudos de Roquette-Pinto sobre a população
brasileira emergem, por um lado, como um guia para o “conhecimento objetivo” da
realidade brasileira e, por outro, como um instrumento de poder, uma estratégia
política, capaz de refutar os prognósticos negativos sobre o país e sobre o
caráter antropológico dos brasileiros. Não por acaso, Roquette-Pinto destaca,
ao longo das páginas de Ensaios de
Antropologia Brasiliana, que a antropologia prestava “um enorme serviço” às
autoridades “responsáveis pelos destinos do país”, apresentando “documentos
científicos seguros” sobre a atual situação da população brasileira. Em suas
palavras, a “antropologia do Brasil” não apenas “desmente e desmoraliza os
pessimistas”, como também “prova que o homem, no Brasil, precisa ser educado e
não substituído” (Idem, 172), referindo-se aqueles que defendiam a substituição
dos mestiços brasileiros por imigrantes europeus como a única alternativa para
solucionar os “problemas nacionais”.
É justamente por ser uma obra de ciência e de militância política que Ensaios de Antropologia Brasiliana ocupa
um lugar importante na produção intelectual brasileira da década 1930. Ao lado
de Casa-grande & Senzala, o livro
de Roquette-Pinto foi uma das obras que contribuiu para frear a expansão das
teorias raciais profundamente deterministas que circulavam no país desde o
final do século XIX, sobretudo aquelas ligadas à eugenia e ao darwinismo social.
Os capítulos reunidos nessa obra não apenas trazem uma reflexão intelectual mais
ampla sobre a questão racial e a formação da identidade antropológica brasileira,
como também permitem repensar os diagnósticos e projetos de reforma nacional,
refutando o determinismo a que estaria entregue o futuro do país e de sua
população.
[1] Desde a primeira edição, os capítulos de Ensaios de Antropologia Brasiliana não apresentam títulos, sendo apenas identificados pela numeração de 1 a 16. Não pretendo, nessa resenha, analisar individualmente cada um deles, mas agrupá-los de acordo com as temáticas tratadas, permitindo ao leitor identificar aspectos que considero mais polêmicos e recorrentes ao longo do livro.