Belchior era um expoente, nos anos 70", entre duas vertentes de esquerda que entraram em conflito no final da década. Enquanto a Tropicália foi uma resposta da esquerda-desbunde (é proibido proibir, tudo é divino tudo é maravilhoso) à velha esquerda (passeata contra a guitarra elétrica), Belchior é uma esquerda mais madura, aprendendo com seus erros; ao mesmo tempo em que desmascara a falsa libertação tropicalista fazendo sua cartografia social (zona sul do Rio), sustenta um pessimismo, sem medo de ouvir Beatles. Bem representativo, é quando ele chama Caetano de “velho compositor baiano”.
Os versos de Belchior: “O Nordeste não existe, o nordeste é uma ficção”, proposição que deixaria Edu Lobo, Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo e Chico Buarque sem assunto para escrever canções. Era comum, para cantores e escritores de esquerda, passar por cima do que hoje, através do debate estadunidense, aprendemos a chamar de lugar de fala. Assim, com tranquilidade, moradores do Leblon, assumiam a persona dos parentes de seus porteiros e garçons para comporem sobre as penúrias rurais do Brasil profundo. A imagem figurativa do nordeste – usada até hoje pelos partidos da “grande esquerda” (aqueles em que o Chico Buarque vota) – é desmistificada por Belchior, o nordestino outsider, residente de “cabarés na Lapa”, preso ao seu RG, que deve rotineiramente mostrar aos policiais.
Por isso ele escreve, agora de volta à outra esquerda, que “a minha alucinação é suportar o dia-a-dia e meu delírio é a experiência com coisas reais”. Psicodélico é o salário-mínimo. O milagre, a alucinação, não servem como tema de canção. Isso é um pressuposto ético, pois “sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa”, mas também é estético, já que “viver é melhor que sonhar”. A arte é menos interessante que a vida. Ao mesmo tempo, o cotidiano não deve ser convertido, como na canção homônima de Chico Buarque, em êxtase sensual ou épico de sobrevivência. Por isso Belchior se diz “um simples cantador das coisas do porão” – porão da MPB, é claro. “Não há motivo para festa” e nada é divino ou maravilhoso: estamos vivendo em uma ditadura militar! Essas são as coisas reais de que ele falava. Ainda são reais.
Além do materialismo, Belchior se interessava por outra questão, mais filosófica. Como Tom Zé teme A Felicidade, Belchior anseia A Novidade. É tema subjacente a canções diversas, algo que explicitamente atraía o compositor. Como expressar a novidade? Como deixar o passado morrer, como se compreender a partir de algo que sequer está aí? Das duas temáticas de Belchior, sua principal intérprete, Elis Regina, escolheu apenas a novidade (por motivos óbvios, ela não podia falar do materialismo). “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida” são odes exclusivas ao tema. “O novo sempre vem” e “o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Parece pura exaltação.
Contudo ainda somos como nossos pais e coisa e tal… Os hippies estavam aqui semana passada, já são velhos. O que é o novo? Uma incessante busca? Isso falariam as múmias pós-modernas, antropófagos de tudo, mas com uma predileção por intelectuais francófonos… (“quero esquecer o francês”, diria Belchior).
Para ouvir Belchior é necessário fundir materialismo e novidade… O novo é concreto, como os discípulos pirados de Heráclito, que ficavam apontando pras coisas e dizendo “vejam só, já não é mais o mesmo, já não é, já não é, já não é”, “é o novo, é o novo, é o novo”. Mas não é a filosofia, e sim “a voz ativa” que “é uma boa”. São as coisas reais, ao nosso redor, em nosso cotidiano, a novidade incessante; não as caricaturas de oprimidos distantes, mas a matéria-prima em cada esquina, atualíssima. “Olho de frente a cara do presente e sei que vou ouvir a mesma história porca.” Afinal, “o que é que pode fazer o homem comum neste presente instante senão sangrar?” (Conheço o Meu Lugar, 1979).
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