domingo, 11 de agosto de 2013

Uma Raça de Homens Mais Ousados, Ainda, Que os Primeiros Conquistadores.

Enquanto os do norte mos­travam o Brasil já intangível, no sul, outros, de outro modo, anunciavam a nova pátria, e a fortaleciam e distendiam domi­nando o gentio, incorporando-o à nacionalidade nascente, des­bravando o continente, conquistando todo o seu interior, ga­nhando, para o Brasil que neles se fazia, o coração ainda virgem da América do Sul. Em verdade, o que os paulistas realizaram é único em toda América: nem Almagro, nem Cortês, nem o pró­prio Balboa... Estes são iluminados aventureiros, cuja ação não alcança além de ouro farejado. A mesma expedição de Pizarro ao "Eldorado”, que o faz penetrar até as águas do Amazonas: é um transe de delírio, sem efeitos úteis, pois que tudo se resume na coragem feroz, cruel, que decai se não lobriga a riqueza pronta para ser colhida. Falta, à intrepidez castelhana, a indômita tenacidade, a impavidez serena ante o desconhecido. Isto, com que se caracteriza o ganhador de terras é, no entanto, o mais vulgar, no valor dos brasileiros que nos deram fronteiras nos dois hemisférios, e levaram a pátria — das praias onde fica­ram os portugueses às quebradas dos Andes.

Quem quiser bem apreciar o valor das energias que dilata­ram o Brasil por todos os derivados do grande planalto central da América do Sul, e quiser julgar com verdade (se este, aqui, parecer excessivo apreço), verifique as razões, como o explicam os norte-americanos — de terem ficado agarrados ao litoral, até depois da independência, em fins do século XVIII. Note-se que, passado o período de domínio holandês em Nova York (meados do século XVII), os antepassados dos norte-americanos eram senhores incontestados e tranqüilos de toda a costa do Atlântico, de Lew Brunswick à Flórida. Não avançaram para oeste, justificam-nos, os de hoje: “... muitos rios davam acesso para o interior, mas nenhum, salvo o Hudson, era navegável a uma grande distância, pois os Alleghanies constituíam, de fato, um obstáculo formidável.., e os colonos gastaram muito tempo para transpô-los...”, Transportemos para os paulistas tais dificulda­des: os rios de que se serviam não eram francamente navegáveis, nem para navios de forte tonelagem, nem para os de fraca, nem para as simples canoas; os bandeirantes iam por eles a pequenos trechos tendo de carregar às costas, nos intervalos, as pirogas em que montavam, detidos a todo instante pelas dezenas e deze­nas de cachoeiras e corredeiras obrigados a passarem de uns rios para outros, para outros... Em mais de dois séculos, os futu­ros ianques não tinham subido os Alieghanies; antes de trinta anos, a gente de S. Vicente havia galgado Paranapiacaba e Cu­batão, e dominava o planalto de Piratininga, donde safra, depois, para distender a colônia por todos os sertões, mesmo os já ocupados.

Estas coisas são lembradas, não para encarecer valor, nem ostentar superioridades. Há, no estadunidense, pelas próprias condições de formação, tanta superioridade invejável, que a sua pouca inflação colonial em nada o diminui, não há tal intuito; mas, é impossível considerar esse caso, sem destacar o excepcio­nal poder de expansão do Brasil. Hoje, a grande República se dilata por um imenso país — maior que o Brasil no entanto, como cresceu a nação americana? Comprando, comprando... ou, já poderosa e rica, avançando sobre vizinhos fracos, atormenta­dos internamente pelas repetidas revoluções, e mais enfraqueci­dos, ainda, pela afronta do estrangeiro. Em contestação com o inglês, após a independência, a Norte-América teve de ficar no que era. Cresceu porque o francês, incapaz, então, e o espanhol, degradado, deram-lhe, por pouco dinheiro, das melhores terras do mundo, já desbravadas, com uma população feita (na Louisia­na), e, assim, em menos de meio século, os Estados Unidos pu­deram ser, em tudo, uma grande nação. Iniciado, assim, na ex­pansão, o ianque tomou gosto, e não lhe custou quadruplicar, quase, a extensão primitiva. Houve, não há dúvida, uns aspectos duros, no seu avanço para o decantado far west, em contestação viva com o gentio ainda existente pelos sertões... Foram grandes lances, muitas vezes; mas tudo não passou de conquista realizada por uma nação feita, poderosa e rica, servindo-se de todos os maravilhosos recursos militares do tempo. O que os bandeirantes paulistas fazem, em 1650, em número insignificante, com os seus pobres meios pessoais, sem outros recursos válidos além da indefectível coragem; esse desbravar do continente, só no século XIX o tentam os norte-americanos. E os sucessos lhes parecem façanha épica. Lá está a estátua eqüestre do general, vencedor te­mível de sioux e apaches...

Não podemos deixar de pensar que, ali, empregando os meios que o século e a riqueza toda da nação permitiam, eles(ianques) lutavam contra tribos em parte desmoralizadas por três séculos de vizinhança dos brancos, ao passo que os paulistas, desprovi­dos de tudo, enfrentavam nações ainda em pleno vigor, apenas aproximadas dos brancos, ou admiravelmente organizadas pelos jesuítas, em aglomerações como as de Guaíra de 200.000 almas, segundo cálculos repetidos nos historiadores. Reflita-se nisto: em 1650, já estava absolutamente sistematizado o tráfico para as minas de Cuiabá; no entanto, todo o caminho se fazia, ainda, desde o Piratininga até lá, tendo, como escalas, seis ou sete casais de roceiros, nos intervalos de dezenas e dezenas de léguas de natureza crua, apenas percorrida pelos sertanistas e as tribos Inimigas. Em 1797, relatava o sargento-mor de enge­nheiros. Ricardo de Almeida Serra: "A viagem que se faz de S. Paulo a Cuiabá, é pelos rios Tietê, Paraná, Pardo Camapuã, Coxim, Taquari, Paraguai, Porrudos e Cuiabá, descem do uns e subindo outros, nos quais se passam mais de 10( cachoeiras... compreende boas 600 léguas de navegação, em que se gastam seis meses”. Faltou ao oficial engenheiro mencionar: que longas e ásperas léguas se faziam tendo o gentio inimigo a lado, ou pelas costas, a alvejar do mato, bem escondido, os viajantes, que não tinham melhor garantia, nem outro resguardo além da impávida valentia. O ministro — Lopo de Saldanha —que até nos parece exceção de lucidez, na sua gente daqueles tempos; quando procura o remédio possível para a mísera situa­ção do sul (Colônia do Sacramento), manda que recorram aos paulistas “que com o só provimento de pólvora e chumbo, têm penetrado e descoberto a maior parte do Brasil”. O ministro português evocava uma tradição viva: bastou que se falasse na ida de paulistas para ali, e a onda de tapes e castelhanos estreme­ceu. Note-se, agora: a formidável expansão dos paulistas é de efeitos que se impõem aos outros colonizadores do continente. Garray, que pelo pensamento muito elevou e muito defendeu o seu Paraguai, deixa bem demonstrado que o grande sucesso das reduções de jesuítas era devido à necessidade de manter, naquela forma, as tribos e os territórios contra a atividade dos paulistas. Nem por isso, evitaram aquilo que, em Guaíra, foi um tremendo desastre para espanhóis e jesuítas, isto é, o aniquilamento de aldeamentos contendo população de províncias, sem contar as povoações civis que também foram destruídas. E foi assim que todo o alto Paraná se incorporou ao Brasil. Bandeirantes homens, diante de quem, apesar de quantas ferezas e crimes lhes sejam imputados, a alma boa de Southey o defensor dos je­suítas seus inimigos, não se contém, e transborda de admiração, em longos elogios. Para esse historiador, não terá havido, pela América, mais bravura, e patriotismo, e intrepidez: “Homens de indômita coragem, e a toda prova para os sofrimentos.., Eram os paulistas incansáveis nas suas explorações... Uma raça de homens mais ousados, ainda, que os primeiros conquistadores. Ao passo que extinta era nos espanhóis do Paraguai toda ativida­de e empresa”.

Em empresas tais, na mesma fortaleza de ânimo, fizeram-se os nomes que, na expansão do Brasil, rivalizaram com a fama dos heróis pernambucanos. Criadores de caminhos, obra essen­cialmente civilizadora, esses bandeirantes conduzem o Brasil para uma autonomia indestrutível, que é a de quem, por si mes­mo, por si só, adquiriu a terra em que se estabeleceu. É por tudo isso que o nome deles se tomou distinto, como os dos pernam­bucanos, e de valor internacional. Todos que conhecem e tratam de coisas sul-americanas, mencionam o povo valente, e intransi­gente na sua autonomia, esses paulistas que, ainda nas cortes portuguesas de 1820, são nominalmente referidos como efeito de irritante pavor para aqueles que, então, pensavam reduzir-nos à simples condição de colônia.

É verdade que, no Brasil, tão bem unificado em sentimento patriótico, tais qualidades de destaque não podiam ser exclusivas, nessa, ou naquela província, e Southey mesmo reconhece que as qualidades cm que valiam os paulistas estendiam-se a outros bra­sileiros: “Pernambucanos e paraenses eram igualmente intrépidos em dominar territórios”. Sim: mas também é verdade que o traça dos intrépidos paulistas riscou todo o interior do Brasil — Bahia, Minas, Pará, Mato Grosso... até as águas do Tocantins e Amazonas. Em abril de 1674, uma Carta Régia de Lisboa tem dc gritar, sobre a extensão do continente: “Cabo da tropa da gente de S. Paulo que vos achais nas cabeceiras do rio Tocantins e Grão-Pará: eu vos envio muito saudar!...”.

Um mineiro de grande pensamento, repetido em Paulo Prado, se contempla o passado em que se desvendaram as minas, curva-se ante os pioneiros do sertão: “... arrostavam os malotes perigos; não temiam o tempo, as estações, a chuva, a seca, o frio, o calor, os animais ferozes, répteis que davam a morte quase instantânea, e mais que tudo, o indomável e vingativo índio antropófago... em renhida e encarni­çada guerra. Para eles não havia bosques impenetráveis, serras alcantiladas, rios caudalosos, precipícios, abismos insondáveis. Se não tinham o que comer, roíam as raízes das árvores.., e lagartos, cobras, sapos... se não tinham o que beber, sugavam o sangue dos animais que matavam” (Paulística, pág. 66).

Ao tempo que os pernambucanos arrancavam a sua terra ao domínio do holandês, os paulistas afirmavam o seu patriotismo — defendendo, por antecipação, o solo por onde o Brasil devia irradiar-se. Um dos poucos espanhóis desbravadores de sertão, Irala, tinha levado a sua gente até o alto Uruguai, Paraguai, Paraná. Pois, veio mais população espanhola, na ambição de minas, e resultou fundarem-se, sucessivamente, três povoações: Oitiveros, Ciudad Real e Vila Rica. Mas, dado o regime da colo­nização castelhana, isolaram-se esses pueblos do Paraná, degradando-se em barbárie, por esse mesmo isolamento, e houve que entregar a obra de civilização dos sertões, com o respectivo gentio, aos jesuítas. Segundo a norma que lhes era própria, aos jesuítas espanhóis, os do Paraná internaram-se para isolarem-se dos próprios compatriotas, e vieram estabelecer as suas reduções bem no alto sertão, que é hoje essencialmente brasileiro — no território de Guaíra. Fez-se a primeira Missdc, de Loreto, com sucesso imediato, e tanto que não tardou formarem-se outras, como a dc 5. Ignácio-Gt~açu. Em breve, havia para mais de 120.000 guaranis aldeados, captados pelos jesuítas, para a p*ria dos novos castelhanos e, com eles, as respectivas possessões tinham avançado até o coração do continente, a entestar com os redutos brasileiros. A energia de expansão do paulista não o per­mitiu, porém, e o domínio castelhano foi extirpado, dali, até às raízes. Os jesuítas, que eram os melhores cronistas da época, adversários tradicionais dos paulistas, fizeram para estes uma reputação em que só não lhes é negada, dentre boas qualidades, a coragem. Para este caso — Guaíra, em que eles, -osrje-wftas~ foram os feridos, a história é contada de modo a que se faça des­ses brasileiros o pior conceito.

Paulo Prado, antes de lembrar que, durante dois séculos, os inventários paulistas repetiam a lúgubre glorificação — morto no sertão —, acentua o apavorado ódio do jesuíta contra os ma­melucos de Piratininga., que “invadiam os desertos, destruindo-lhes as reduções, e repelindo o tradicional inimigo para além das barrancas dos grandes rios do sertão”. E mostra que os excessos dos bandos mamelucos tinham explicação na rudeza dos tempos, ao mesmo tempo que afirmavam as qualidades fortes da raça... Ora, é isto o que mais importa quando se trata de verificar a ca­pacidade de realização de um povo, a quem o tempo necessaria­mente humanizará. De fato, qualquer que fosse a carência moral do bandeirante, o Brasil a fazer-se pedia, sobretudo, essa capaci­dade de afirmação. Nada mais fácil e mais simples do que ex­trair e apuraria natural generosidade do homem forte. Duros e feros como parecessem os bandeirantes e os Insurgentes, isto não impediu que o Brasil chegasse a essa bondade d’alma, característica do brasileiro.
 
Manoel Bomfim.

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