Enquanto
os do norte mostravam o Brasil já intangível, no sul, outros, de outro
modo, anunciavam a nova pátria, e a fortaleciam e distendiam dominando
o gentio, incorporando-o à nacionalidade nascente, desbravando o
continente, conquistando todo o seu interior, ganhando, para o Brasil
que neles se fazia, o coração ainda virgem da América do Sul. Em
verdade, o que os paulistas realizaram é único em toda América: nem
Almagro, nem Cortês, nem o próprio Balboa... Estes são iluminados
aventureiros, cuja ação não alcança além de ouro farejado. A mesma
expedição de Pizarro ao "Eldorado”, que o faz penetrar até as águas do
Amazonas: é um transe de delírio, sem efeitos úteis, pois que tudo se
resume na coragem feroz, cruel, que decai se não lobriga a riqueza
pronta para ser colhida. Falta, à intrepidez castelhana, a indômita
tenacidade, a impavidez serena ante o desconhecido. Isto, com que se
caracteriza o ganhador de terras é, no entanto, o mais vulgar, no valor
dos brasileiros que nos deram fronteiras nos dois hemisférios, e levaram
a pátria — das praias onde ficaram os portugueses às quebradas dos
Andes.
Quem
quiser bem apreciar o valor das energias que dilataram o Brasil por
todos os derivados do grande planalto central da América do Sul, e
quiser julgar com verdade (se este, aqui, parecer excessivo apreço),
verifique as razões, como o explicam os norte-americanos — de terem
ficado agarrados ao litoral, até depois da independência, em fins do
século XVIII. Note-se que, passado o período de domínio holandês em Nova
York (meados do século XVII), os antepassados dos norte-americanos eram
senhores incontestados e tranqüilos de toda a costa do Atlântico, de Lew Brunswick à Flórida. Não avançaram para oeste, justificam-nos, os
de hoje: “... muitos rios davam acesso para o interior, mas nenhum,
salvo o Hudson, era navegável a uma grande distância, pois os
Alleghanies constituíam, de fato, um obstáculo formidável.., e os
colonos gastaram muito tempo para transpô-los...”, Transportemos
para os paulistas tais dificuldades: os rios de que se serviam não eram
francamente navegáveis, nem para navios de forte tonelagem, nem para os
de fraca, nem para as simples canoas; os bandeirantes iam por eles a
pequenos trechos tendo de carregar às costas, nos intervalos, as pirogas
em que montavam, detidos a todo instante pelas dezenas e dezenas de
cachoeiras e corredeiras obrigados a passarem de uns rios para outros,
para outros... Em mais de dois séculos, os futuros ianques não tinham
subido os Alieghanies; antes de trinta anos, a gente de S. Vicente havia
galgado Paranapiacaba e Cubatão, e dominava o planalto de Piratininga,
donde safra, depois, para distender a colônia por todos os sertões,
mesmo os já ocupados.
Estas
coisas são lembradas, não para encarecer valor, nem ostentar
superioridades. Há, no estadunidense, pelas próprias condições de
formação, tanta superioridade invejável, que a sua pouca inflação
colonial em nada o diminui, não há tal intuito; mas, é impossível
considerar esse caso, sem destacar o excepcional poder de expansão do
Brasil. Hoje, a grande República se dilata por um imenso país — maior
que o Brasil no entanto, como cresceu a nação americana? Comprando,
comprando... ou, já poderosa e rica, avançando sobre vizinhos fracos,
atormentados internamente pelas repetidas revoluções, e mais
enfraquecidos, ainda, pela afronta do estrangeiro. Em contestação com o
inglês, após a independência, a Norte-América teve de ficar no que era.
Cresceu porque o francês, incapaz, então, e o espanhol, degradado,
deram-lhe, por pouco dinheiro, das melhores terras do mundo, já
desbravadas, com uma população feita (na Louisiana), e, assim, em menos
de meio século, os Estados Unidos puderam ser, em tudo, uma grande
nação. Iniciado, assim, na expansão, o ianque tomou gosto, e não lhe
custou quadruplicar, quase, a extensão primitiva. Houve, não há dúvida,
uns aspectos duros, no seu avanço para o decantado far west, em
contestação viva com o gentio ainda existente pelos sertões... Foram
grandes lances, muitas vezes; mas tudo não passou de conquista realizada
por uma nação feita, poderosa e rica, servindo-se de todos os
maravilhosos recursos militares do tempo. O que os bandeirantes
paulistas fazem, em 1650, em número insignificante, com os seus pobres
meios pessoais, sem outros recursos válidos além da indefectível
coragem; esse desbravar do continente, só no século XIX o tentam os
norte-americanos. E os sucessos lhes parecem façanha épica. Lá está a
estátua eqüestre do general, vencedor temível de sioux e apaches...
Não
podemos deixar de pensar que, ali, empregando os meios que o século e a
riqueza toda da nação permitiam, eles(ianques) lutavam contra tribos em
parte desmoralizadas por três séculos de vizinhança dos brancos, ao
passo que os paulistas, desprovidos de tudo, enfrentavam nações ainda
em pleno vigor, apenas aproximadas dos brancos, ou admiravelmente
organizadas pelos jesuítas, em aglomerações como as de Guaíra de 200.000
almas, segundo cálculos repetidos nos historiadores. Reflita-se nisto:
em 1650, já estava absolutamente sistematizado o tráfico para as minas
de Cuiabá; no entanto, todo o caminho se fazia, ainda, desde o
Piratininga até lá, tendo, como escalas, seis ou sete casais de
roceiros, nos intervalos de dezenas e dezenas de léguas de natureza
crua, apenas percorrida pelos sertanistas e as tribos Inimigas. Em 1797,
relatava o sargento-mor de engenheiros. Ricardo de Almeida
Serra: "A viagem que se faz de S. Paulo a Cuiabá, é pelos rios
Tietê, Paraná, Pardo Camapuã, Coxim, Taquari, Paraguai, Porrudos e
Cuiabá, descem do uns e subindo outros, nos quais se passam mais de 10(
cachoeiras... compreende boas 600 léguas de navegação, em que se gastam
seis meses”. Faltou ao oficial engenheiro mencionar: que longas e
ásperas léguas se faziam tendo o gentio inimigo a lado, ou pelas costas,
a alvejar do mato, bem escondido, os viajantes, que não tinham melhor
garantia, nem outro resguardo além da impávida valentia. O ministro —
Lopo de Saldanha —que até nos parece exceção de lucidez, na sua gente
daqueles tempos; quando procura o remédio possível para a mísera
situação do sul (Colônia do Sacramento), manda que recorram aos
paulistas “que com o só provimento de pólvora e chumbo, têm penetrado e descoberto a maior parte do Brasil”. O
ministro português evocava uma tradição viva: bastou que se falasse na
ida de paulistas para ali, e a onda de tapes e castelhanos estremeceu.
Note-se, agora: a formidável expansão dos paulistas é de efeitos que se
impõem aos outros colonizadores do continente. Garray, que pelo
pensamento muito elevou e muito defendeu o seu Paraguai, deixa bem
demonstrado que o grande sucesso das reduções de jesuítas era devido à
necessidade de manter, naquela forma, as tribos e os territórios contra a
atividade dos paulistas. Nem por isso, evitaram aquilo que, em Guaíra,
foi um tremendo desastre para espanhóis e jesuítas, isto é, o
aniquilamento de aldeamentos contendo população de províncias, sem
contar as povoações civis que também foram destruídas. E foi assim que
todo o alto Paraná se incorporou ao Brasil. Bandeirantes homens, diante
de quem, apesar de quantas ferezas e crimes lhes sejam imputados, a alma
boa de Southey o defensor dos jesuítas seus inimigos, não se contém, e
transborda de admiração, em longos elogios. Para esse historiador, não
terá havido, pela América, mais bravura, e patriotismo, e intrepidez: “Homens
de indômita coragem, e a toda prova para os sofrimentos.., Eram os
paulistas incansáveis nas suas explorações... Uma raça de homens mais
ousados, ainda, que os primeiros conquistadores. Ao passo que extinta
era nos espanhóis do Paraguai toda atividade e empresa”.
Em
empresas tais, na mesma fortaleza de ânimo, fizeram-se os nomes que, na
expansão do Brasil, rivalizaram com a fama dos heróis pernambucanos.
Criadores de caminhos, obra essencialmente civilizadora, esses
bandeirantes conduzem o Brasil para uma autonomia indestrutível, que é a
de quem, por si mesmo, por si só, adquiriu a terra em que se
estabeleceu. É por tudo isso que o nome deles se tomou distinto, como os
dos pernambucanos, e de valor internacional. Todos que conhecem e
tratam de coisas sul-americanas, mencionam o povo valente, e
intransigente na sua autonomia, esses paulistas que, ainda nas cortes
portuguesas de 1820, são nominalmente referidos como efeito de irritante
pavor para aqueles que, então, pensavam reduzir-nos à simples condição
de colônia.
É
verdade que, no Brasil, tão bem unificado em sentimento patriótico,
tais qualidades de destaque não podiam ser exclusivas, nessa, ou naquela
província, e Southey mesmo reconhece que as qualidades cm que valiam os
paulistas estendiam-se a outros brasileiros: “Pernambucanos e paraenses eram igualmente intrépidos em dominar territórios”.
Sim: mas também é verdade que o traça dos intrépidos paulistas riscou
todo o interior do Brasil — Bahia, Minas, Pará, Mato Grosso... até as
águas do Tocantins e Amazonas. Em abril de 1674, uma Carta Régia de
Lisboa tem dc gritar, sobre a extensão do continente: “Cabo da tropa da gente de S. Paulo que vos achais nas cabeceiras do rio Tocantins e Grão-Pará: eu vos envio muito saudar!...”.
Um mineiro de grande pensamento, repetido em Paulo Prado, se contempla o passado em que se desvendaram as minas, curva-se ante os pioneiros do sertão: “... arrostavam os malotes perigos; não temiam o tempo, as estações, a chuva, a seca, o frio, o calor, os animais ferozes, répteis que davam a morte quase instantânea, e mais que tudo, o indomável e vingativo índio antropófago... em renhida e encarniçada guerra. Para eles não havia bosques impenetráveis, serras alcantiladas, rios caudalosos, precipícios, abismos insondáveis. Se não tinham o que comer, roíam as raízes das árvores.., e lagartos, cobras, sapos... se não tinham o que beber, sugavam o sangue dos animais que matavam” (Paulística, pág. 66).
Ao
tempo que os pernambucanos arrancavam a sua terra ao domínio do
holandês, os paulistas afirmavam o seu patriotismo — defendendo, por
antecipação, o solo por onde o Brasil devia irradiar-se. Um dos poucos
espanhóis desbravadores de sertão, Irala, tinha levado a sua gente até o
alto Uruguai, Paraguai, Paraná. Pois, veio mais população espanhola, na
ambição de minas, e resultou fundarem-se, sucessivamente, três
povoações: Oitiveros, Ciudad Real e Vila Rica. Mas, dado o regime da
colonização castelhana, isolaram-se esses pueblos do Paraná,
degradando-se em barbárie, por esse mesmo isolamento, e houve que
entregar a obra de civilização dos sertões, com o respectivo gentio, aos
jesuítas. Segundo a norma que lhes era própria, aos jesuítas espanhóis,
os do Paraná internaram-se para isolarem-se dos próprios compatriotas, e
vieram estabelecer as suas reduções bem no alto sertão, que é hoje
essencialmente brasileiro — no território de Guaíra. Fez-se a primeira
Missdc, de Loreto, com sucesso imediato, e tanto que não tardou
formarem-se outras, como a dc 5. Ignácio-Gt~açu. Em breve, havia para
mais de 120.000 guaranis aldeados, captados pelos jesuítas, para a p*ria
dos novos castelhanos e, com eles, as respectivas possessões tinham
avançado até o coração do continente, a entestar com os redutos
brasileiros. A energia de expansão do paulista não o permitiu, porém, e
o domínio castelhano foi extirpado, dali, até às raízes. Os jesuítas,
que eram os melhores cronistas da época, adversários tradicionais dos
paulistas, fizeram para estes uma reputação em que só não lhes é negada,
dentre boas qualidades, a coragem. Para este caso — Guaíra, em que
eles, -osrje-wftas~ foram os feridos, a história é contada de modo a que
se faça desses brasileiros o pior conceito.
Paulo
Prado, antes de lembrar que, durante dois séculos, os inventários
paulistas repetiam a lúgubre glorificação — morto no sertão —, acentua o
apavorado ódio do jesuíta contra os mamelucos de Piratininga., que
“invadiam os desertos, destruindo-lhes as reduções, e repelindo o
tradicional inimigo para além das barrancas dos grandes rios do sertão”.
E mostra que os excessos dos bandos mamelucos tinham explicação na
rudeza dos tempos, ao mesmo tempo que afirmavam as qualidades fortes da
raça... Ora, é isto o que mais importa quando se trata de verificar a
capacidade de realização de um povo, a quem o tempo necessariamente
humanizará. De fato, qualquer que fosse a carência moral do bandeirante,
o Brasil a fazer-se pedia, sobretudo, essa capacidade de afirmação.
Nada mais fácil e mais simples do que extrair e apuraria natural
generosidade do homem forte. Duros e feros como parecessem os
bandeirantes e os Insurgentes, isto não impediu que o Brasil chegasse a
essa bondade d’alma, característica do brasileiro.
Manoel Bomfim.
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