"E se mais terra houvera, lá chegara!"
Escrita por Vigílio, maior poeta do mundo romano do I século antes de Cristo, Enéias, filho de Afrodite, será o personagem central da epopeia "Eneida", símbolo da continuidade das gerações.
Zeus, aparece em sonho a Enéias e lhe ordena tomar o compromisso de
buscar uma terra de nome Hespéria para ali formar uma raça.
Chegando ao território da Hespéria (antiga Itália) Enéias, muito saudoso
de seu velho pai que morrera na viagem, vai à Cumas procurar a “Sibila
de Cumas”. Quer que ela o leve ao reino dos mortos. Esta era a mais
famosa das pitonisas. Com inigualáveis poderes, previu com minúcias os
destinos do Império Romano, que constam nos famosos “Livros Sibilinos”,
guardados no templo de Júpiter Capitolino.
A Sibila de Cumes mostra a Enéias os indivíduos que irão nascer na raça
que ele criará, e lhe mostra o rio Lete, onde as almas beberão o
esquecimento das vidas passadas, antes de nascerem na futura Roma.
Chegando finalmente em suas proximidades, encontrou o chefe de uma tribo
de nome Latino (que daria nome a futura raça). Pai de uma jovem de nome
Lavínia, num sonho, Latino havia sido advertido pelos Deuses que
guardasse sua filha para um estrangeiro que formaria com ela uma raça
que dominaria o mundo.
Casando-se com Lavínia, Enéias conta entre seus descendentes uma Vestal de nome Réa Silvia por quem o Deus Marte se apaixonara. Desta ligação nasceram
dois gêmeos: Rômulo e Remo. As Vestais eram sacerdotisas da deusa
Vesta, guardadoras do fogo sagrado que protegia o local onde hoje é
Roma. Obedeciam a um rigoroso voto de castidade e eram punidas com a
morte se o transgredissem.
Falta-lhe contudo mulheres para procriar filhos que viessem habitá-la.
Invade então uma cidade vizinha e lá rouba as suas mulheres. Episódio
este conhecido na História como “O Roubo das Sabinas”. Fundada por um
filho do Deus da guerra, Marte, Roma nasce sob a égide da violência.
Torna-se um dos povos mais conquistadores, violento e invasor da
Antiguidade.
O ciclo mítico, em Titanomachia, se inicia com uma luta contra forças primitivas, entre os titãs antropófagos, liderados por Saturno, e os deuses olímpicos, termina com a derrota de Saturno, que, em sua fuga, gera uma nova Idade de Ouro no Lácio. Depois desta Idade de Ouro é fundada uma civilização. Este mitologema resume a proposta do périplo de Enéias para a fundação mítica de Roma, advinda de uma viagem causada pela derrota dos troianos em uma guerra e a fuga de Enéias com a transferência dos Lares e Penates para uma nova cidade, quando chega ao Lácio, à Hespéria, ao Ocidente de Tróia. Logo, o mitologema narrado por Evandro é a síntese do mito hespérico: um exílio com a transferência de uma civilização.
Essa ampla cosmogonia sincretizada dará no Renascimento o tópos humanista da Ilha dos Amores, forma recorrente ao locus amoenus clássico, que encontramos n´Os Lusíadas, e em obras de diversos humanistas como Miguel de Cabedo, como no poema In nuptias Serenissimorum Principum Ioannis et Ioannae (SILVA, 1985 p.8190). Portanto, estará presente também em documentos medievais e, indiretamente, na Carta de Caminha, sobre o Brasil.
Podemos contabilizar três Hespérias no mito clássico:
1. o ocidente de Tróia, a primeira Hespéria é o Lácio, narrada em
Virgílio, ao longo da Eneida;
2. em seguida a Hespéria, o
ocidente do Lácio, é a Hispânia, narrada nas odes de Horácio;
3. a terceira Hespéria, o
ocidente da Hispânia, são as Fortunatae insulae, as Ilhas Canárias,
narradas por Diodoro, por Apolônio de Rodes, entre outros.
Estas ilhas são identificadas também como a civilização Atlântida do Timeu de Platão, confins do mundo helênico. Por fim, o ocidente, a Hespéria, das Ilhas Canárias é o Brasil, narrado no "De Gestis" de Anchieta. Logo, o ciclo mítico de Tróia chega ao Brasil, que se integra na tradição ocidental.
Em De Gestis, percebemos que dois momentos míticos são fundamentais em sua estrutura: a aurea aetas e a Titanomachia. Ainda que não expressos diretamente, ambos os mitos presentes remetem-nos ao mito medieval das Ilhas Brasil e este ao arcaico mito grego da ilha das Hespérides, que fazem parte de uma cosmogonia maior: o mito Hespérico. A Titanomachia é o combate entre deuses olímpicos e Titãs, que, no De Gestis, reflete-se na luta contra a antropofagia titânica indígena, porque é nesta base mítica que há o choque entre o homo humanus e o barbarus indígena. Assim, reinscreve-se, no poema anchietano, o mito do ocidente.
O corpus anchietano reflete em si as concepções de um jesuíta e humanista frente à tarefa de catequizar o Novus Mundus. Este projeto colonial, também jesuítico, que resultou na maior nação católica, atualmente, e em um país continental com o maior grupamento de falantes de uma língua neolatina, sofreu processos de transfigurações étnicas abruptas, mas se firmou como nação e Estado ocidental.
Não foram os jesuítas que trouxeram a idéia clássica e medieval do Brasil hespérico para a colônia lusitana da América, mas pela educação, sua maior arma, conseguiram desenvolvê-la e fixá-la como uma verdadeira identidade ocidental. A primeira marca dessa identidade é o De Gestis, que integra o Brasil ao Humanismo Português e ao mundo Greco-romano. Dessa forma, nos séculos subsequentes à expulsão da Cia. de Jesus do Brasil, o Humanismo ainda será uma marca da identidade nacional.
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